The Guardian e Agência Pública: dinheiro do petróleo não resolveu problemas em Campos
Uma reportagem investigativa da Agência Pública, especializada em Jornalismo Investigativo, em parceria com o jornal britânico The Guardian, mostra como as cidades de Presidente Kennedy, no Espírito Santo, e Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, desperdiçaram bilhões em royalties de petróleo para desenvolver a região – ou até para oferecer o básico. Desde o fim do século passado, os cofres públicos de Campos e Kennedy vêm sendo irrigados com cifras bilionárias de royalties e participações especiais (PEs), vinculados à exploração petrolífera na Bacia de Campos.
O que também os conecta é a dificuldade de fazer com que esse aumento vultoso de arrecadação se transforme em melhorias efetivas na vida de seus habitantes. A Agência Pública percorreu as duas cidades em maio de 2025 em busca de entender qual o impacto prático das receitas petrolíferas no desenvolvimento socioeconômico dos campeões em recebimentos desses recursos. Kennedy é a cidade que mais recebeu recursos per capita e Campos é a maior recebedora em valores absolutos.
O que encontramos foi a persistência de velhos problemas comuns a várias cidades brasileiras. Falta de saneamento básico, queixas frequentes sobre atendimento médico, educação pública deficiente, recorrentes casos de corrupção e manutenção de profundas desigualdades sociais dão a tônica de ambos os municípios, apesar de ambos terem muito mais recursos para gastar do que se vê Brasil afora.
Entre moradores das duas cidades, a percepção é de que a riqueza do petróleo não chegou para todos. Se permitiu que as prefeituras locais despejassem dinheiro em obras questionáveis e investissem em programas sociais, colhendo dividendos eleitorais com isso, os royalties não serviram para tirar boa parte da população da miséria – 25% dos kennedenses e dos campistas recebem menos de R$ 218 per capita e estão abaixo da linha da pobreza.
Para o aposentado Romero Gomes, morador de Farol de São Thomé, em Campos de Goytacazes, a exploração do petróleo “trouxe mais problemas e os royalties não deram conta de resolver”. “Ao contrário, eles só agravaram e aprofundaram. Para as prefeituras, é como se fosse a herança de um tio distante, que caiu no colo. Não precisa fazer mais nada e, com isso, o desenvolvimento estrutural da região fica renegado. Só que o combustível fóssil tem data de validade”, diz.
A percepção da população é validada por estudiosos do tema. “O aumento orçamentário não se reverteu em justiça nem na mitigação de desigualdades. Nenhuma pesquisa revela alguma melhoria com relação a isso”, analisa o professor da Universidade Candido Mendes (UCAM) Rodrigo Lira, que atua em um programa de pós-graduação referência na pesquisa sobre os royalties do petróleo.
Para moradores locais, o sentimento é o de que as administrações que comandaram os dois municípios ao longo das décadas de bonança petrolífera foram incapazes de tornar as cidades independentes dos poços de petróleo da região, que estão cada vez mais perto de secar. No ano passado a extração na Bacia de Campos foi menos de 50% do que era em 2017.
A contradição não é exclusividade dos dois municípios. A Pública analisou dez indicadores socioeconômicos dos 15 municípios campeões de receitas petrolíferas per capita, como saúde, educação, pobreza e saneamento básico. Na maior parte dos casos, os municípios petrorrentistas estão entre os piores de seus estados. Kennedy está entre as piores cidades do Espírito Santo nos dez indicadores, enquanto Campos tem desempenho apenas intermediário na maior parte dos índices.
Ao todo, foram mais de R$ 5,7 bilhões, segundo dados extraídos da plataforma InfoRoyalties, da UCAM, e corrigidos pela inflação. Se permitiram gastos controversos, como shows e outros eventos milionários, os bilhões de reais não serviram para tirar boa parte da população local da miséria – além de ¼ estar abaixo da linha da pobreza, 61% está no Cadastro Único (CadÚnico), que permite acesso a benefícios sociais.
Problemas se acumulam em Campos
Campos dos Goytacazes é exemplo de como não usar royalties do petróleo
A dependência econômica dos royalties também é a realidade de Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, o município que mais recebeu rendas petrolíferas no Brasil desde o fim dos anos 1990.
De 1999 até 2024, foram mais de R$ 37 bilhões entre royalties e participações especiais (PEs) vinculados à exploração petrolífera na Bacia de Campos – que tem esse nome justamente por conta do município. Em média, foi quase R$ 1,5 bilhão ao ano, segundo dados da plataforma InfoRoyalties corrigidos pela inflação. No auge, beirou os R$ 3 bilhões.
Mesmo com as cifras bilionárias, mais de 40% dos pouco mais de 500 mil habitantes de Campos está no Cadastro Único (CadÚnico). Os indicadores de saúde são ruins e os de educação e emprego são apenas medianos.
Para especialistas e moradores ouvidos pela reportagem, Campos é um exemplo de como não se aplicar royalties petrolíferos. “O legado [dos royalties] é tão oculto que fica até difícil de enxergar. Não houve um progresso significativo, de mudar da água para o vinho. Houve pequenos avanços aqui, outros ali, mas pelo tempo mesmo, como toda cidade cresce”, afirma o líder comunitário Christiano General, nascido e criado no município.
“É preciso entender qual a vocação da cidade, para fazer um planejamento [com o dinheiro do petróleo] que realmente se sustente, surtindo efeitos positivos. Não houve nada disso. Nós perdemos o bonde da história, [a administração pública] tomou péssimas decisões”, diz o pesquisador Rodrigo Lira, da UCAM.
Única praia de Campos sem melhorias
Campos de Goytacazes é um município grande, o maior do Rio, com 3,3 vezes a área da capital, mas tem uma faixa litorânea de apenas 30 km. A praia de Farol de São Thomé, na porção sudeste da cidade, está a 50 km do centro da cidade e tem quase 30 mil habitantes, 6% da população de Campos. Mesmo com a área diminuta, o bairro é responsável por boa parte da riqueza de Campos: é por causa dessa faixa litorânea que o município recebe os royalties e participações especiais.
Se o risco de que a região de Farol de São Thomé seja atingida por um vazamento de óleo das plataformas de petróleo é um dos principais argumentos para justificar os montantes bilionários que a prefeitura de Campos recebe, a realidade do local revela que o recurso pouco percorreu o trajeto da prefeitura até o mar.
Para chegar da praia ao centro, onde muitos dos moradores trabalham, é sempre uma dificuldade. É preciso recorrer às vans, que começaram a operar irregularmente e hoje prestam o serviço por concessão, mas com horários restritos. Não é raro que trabalhadores fiquem “presos” no centro, sem conseguir voltar para casa, ou que percam consultas médicas e outros compromissos por não conseguirem pegar o transporte.
Os moradores de Farol ainda não têm acesso a esgotamento sanitário e precisam instalar fossas sépticas por conta própria. A limpeza urbana e a coleta de lixo são precárias e é preciso reforçar o repelente a todo momento para não ser vítima dos mosquitos que se multiplicam por quase toda a região.
Os pescadores, que compõem boa parte da mão de obra local e afirmam ser diretamente atingidos pelas bases de exploração petrolífera, reclamam da falta de apoio por parte da prefeitura. Não há porto nem atracadouro e os barcos são puxados e empurrados para o mar com o uso de tratores, uma prática exclusiva da praia campista.
Segundo um pescador local, a prefeitura bancou essa “puxada” por um único mês, mais de 20 anos atrás, mas o auxílio nunca mais se repetiu. Eles gastam, atualmente, R$ 150 reais por dia somente com os tratoristas.
Mesmo a educação, que recebe parte significativa dos investimentos dos royalties por força de lei, sofre com a falta de estrutura em Farol. Na Escola Municipal Cláudia Almeida Pinto de Oliveira, a educação física é realizada há uma década na rua em frente ao colégio, sendo interrompida toda vez que um carro precisa passar, porque o teto e a estrutura da quadra da escola estão danificados há anos.
A prefeitura de Campos de Goytacazes também foi procurada pela Pública, chegou a dizer que estava providenciando uma resposta, mas não se pronunciou até a publicação do texto. A reportagem será atualizada se as gestões se manifestarem.