Sobrinho de Castor, Rogério de Andrade volta à Mocidade e mostra força na Liga por fazer frente à milícia
Problemas no carro de som atrasaram em uma hora o início do ensaio técnico da Mocidade Independente de Padre Miguel, na Sapucaí, no início de janeiro. Ao tomar conhecimento do contratempo, o bicheiro Rogério de Andrade, patrono da agremiação, ficou revoltado. Sob restrição de horário por ordem judicial — ele precisa se recolher diariamente às 20h e faz uso de tornozeleira eletrônica —, acompanhou a situação de casa, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste. No dia seguinte, foi pessoalmente à sede da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), no Centro, cobrar a realização de uma plenária com presidentes das demais escolas do Grupo Especial. O pleito era de que a Mocidade tivesse a chance de ensaiar de novo. O apelo foi prontamente atendido, e o segundo ensaio foi marcado para hoje.
O episódio marca uma mudança na cúpula de bicheiros que domina o carnaval do Rio. O motivo é um só: coube a Andrade controlar com mão de ferro o jogo ilegal na Zona Oeste, área de atuação de milícias. Por impedir a entrada de outros grupos criminosos na contravenção, o sobrinho de Castor é “tolerado” pela antiga cúpula, e veio a se tornar, desta forma, um aliado estratégico. Investigações apontam, ainda, que, em algumas ocasiões, milicianos chegaram a se unir a Andrade, pagando uma espécie de aluguel ao bicheiro para explorar máquinas caça-níqueis. Mesmo com o pacto na cúpula, fontes ligadas ao bicho se arriscam a dizer que ele ainda almeja o domínio total: ser um “capo”, como era o tio, que morreu de causas naturais em 1997.
Nova cúpula
Segundo pessoas ligadas ao carnaval, logo que a velha cúpula deixar de existir, novos personagens podem vir a disputar o comando da Liesa. Da ala de Andrade fazem parte o vice-presidente da Imperatriz Leopoldinense e representante da escola na Liesa, Vinicius Drumond — filho do contraventor Luiz Pacheco Drumond, o Luizinho, que morreu em 2020, após um AVC —, e Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho — ligado à escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, de Duque de Caxias. Outra corrente une representantes da nova geração, como o empresário Gabriel David — filho do bicheiro Aniz Abraão David, o Anísio, patrono da Beija-Flor —, apontado como futuro presidente da Liesa; e Luiz Guimarães, o Luizinho — filho de Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, patrono da Vila Isabel. Os dois são nomes proeminentes nas agremiações onde reinaram seus pais.
Andrade chegou à Mocidade em 2014, 16 anos depois da morte de Castor. Bem ao estilo do tio, usou a escola para ostentar poder: mandou afixar um cartaz com uma foto sua na quadra, acrescentou um pequeno castor ao escudo da agremiação, trouxe DJs internacionais para se apresentarem em seu camarote e passou a fazer investimentos altos nos desfiles — em 2017, a Mocidade foi campeã do carnaval. Depois do título, a maré virou. De 2018 a 2022, o bicheiro teve contas bloqueadas pela Justiça, foi preso duas vezes, passou seis meses foragido e foi acusado de crimes como organização criminosa, corrupção, lavagem de dinheiro e até homicídio.
Em 2018, Andrade decidiu se afastar da folia, embora sempre mantivesse aliados na direção da escola. Nos últimos dois anos, também parou de investir na Mocidade, o que a levou a acumular dívidas. A agremiação, inclusive, quase foi rebaixada no ano passado, ficando em penúltimo lugar.
A falta de investimentos tem uma explicação. Ao investigar Andrade, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Rio (MPRJ), descobriu que o contraventor estaria usando a Mocidade para lavar dinheiro. De acordo com Relatório de Inteligência Financeira do Coaf, havia movimentações suspeitas de dois funcionários da agremiação, como saques em espécie no valor de mais de R$ 5 milhões, no período de 2018 a 2022. Segundo o MPRJ, uma das pessoas, responsável pelas finanças da escola, figurava como “laranja” em três empresas de Andrade. A Justiça, a pedido da Promotoria, confiscou cerca de R$ 40 milhões do bicheiro em embarcações de luxo, imóveis e carros importados.
Sem o dinheiro Andrade, a Mocidade passou a conviver com dívidas, penhoras, bloqueios de verbas decorrentes de processos trabalhistas e também com as últimas posições no Grupo Especial. A crise alimentou o fortalecimento de uma oposição na agremiação, que vislumbrava vencer a eleição marcada para abril do ano passado e tirar a atual administração, ligada a Andrade, do poder.
O novo grupo chegou, inclusive, a mover um processo na Justiça no ano passado, em que acusava o contraventor e seus aliados de tentarem fraudar o processo eleitoral, excluindo do pleito mais de 200 sócios descontentes. A ação culminou na suspensão da eleição a poucos dias de sua realização — diante da “ausência de publicidade e lisura no processo eleitoral”, segundo a Justiça —, o que beneficiou o grupo do bicheiro, que segue à frente da escola no carnaval deste ano.
Paralelamente à disputa política na Mocidade, Andrade passou a acumular vitórias na Justiça a partir de 2022. Em fevereiro daquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu trancar a ação penal a que o bicheiro respondia pelo homicídio de Fernando Iggnácio, genro de Castor e seu rival na disputa pelo espólio do clã Andrade. Já em dezembro, depois de o contraventor passar quatro meses preso sob a acusação de chefiar uma organização criminosa que domina o jogo ilegal na Zona Oeste e distribuir propinas a policiais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) o livrou da cadeia e permitiu que ele respondesse ao processo em prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica.
Escolha de rainha
Em meados do ano passado, Andrade voltou a dar as caras na Mocidade. Apesar da limitação de horário, pois tem que estar em um dos três imóveis que possui até 20h, o bicheiro tem ido à quadra e ainda colocou a mulher, Fabíola Andrade, no cobiçado posto de rainha de bateria. Fontes afirmam que ele continua a não investir na escola, com medo de novas operações policiais.
Em dezembro, a defesa do contraventor pediu a revogação da prisão domiciliar, que está na mesa do ministro do STF Kassio Nunes Marques. A decisão deve sair após a retomada das atividades do tribunal, em 1º de fevereiro.
— Estamos na expectativa de que essa decisão saia e seja positiva. O Rogério já está há mais de um ano em prisão domiciliar e apresenta bom comportamento, respeitando os horários e comparecendo a todas as audiências — afirma André Callegari, advogado do bicheiro.
Embalada pelo maior hit deste carnaval, o samba que conta a história do caju, a Mocidade volta ao páreo para brigar pelas primeiras posições.
Os únicos bicheiros da velha cúpula, ligados ao carnaval, ainda vivos, são Capitão Guimarães — em prisão domiciliar, acusado de um homicídio relacionado à contravenção — e Anísio. Em suas escolas, os dois vivem um momento de consolidação de suas sucessões. Na Beija-Flor, já é dado como certo que o filho do patrono da escola, Gabriel David, vai assumir a presidência da Liesa após o carnaval. A chegada do herdeiro ao cargo mais alto da folia — que é fruto de um acordo interno na liga e ainda não foi confirmada publicamente — marca, de uma vez, a passagem de bastão dos antigos capos para a nova geração. Já a escola de Nilópolis segue sob o comando do ex-cabo da PM Almir Reis — expulso da corporação em 2011 —, apontado pela polícia como braço direito de Anísio no carnaval e seu operador na gestão do jogo ilegal na Baixada Fluminense.
Desde 2022, Luiz Guimarães, filho de Capitão Guimarães, é presidente da escola, mas o pai acompanha o início da gestão do herdeiro de longe. O presidente da Liesa, Jorge Perlingeiro, informou que a plenária para decidir se a Mocidade faria novo ensaio técnico seria realizada por qualquer patrono ou presidente que solicitasse. Segundo ele, a Liesa é independente, só administra o carnaval.
Fonte: O Globo