Esporte

Saquinho de pó e teco ali mesmo: repórter testemunha como consumo de cocaína virou comum entre torcedores

“Você ainda tem coca? Dá uma linha aí pra mim!”

“Sim, toma aí.”

“Vamos ao banheiro?”

“Ah, f***, vai aqui mesmo.”

Eu presenciei o diálogo acima entre torcedores em um trem na Inglaterra. Eles falavam alto em um vagão lotado em que pelo menos metade das pessoas não era de fãs de futebol. O indivíduo tirou um saquinho de pó do bolso e, usando uma chave, deu o chamado ‘teco’ ali mesmo. Uma cena que se repete todo final de semana pelos trilhos ligando os estádios no país do futebol.

Como eu cresci em Londres desde os dez anos de idade, fiz ginásio em uma escola pública e depois faculdade, entendo as gírias, sotaques e nuances. Mas, na verdade, se você prestar atenção, não é difícil de notar. É algo realmente escancarado.

Canto da torcida do Manchester City: “Something is happening, happening to me. Spent all my money on drugs and City” – “Algo está acontecendo, acontecendo comigo. Gastei todo o meu dinheiro com drogas e com o City.”

Canto da torcida do AFC Wimbledon: “We are Wombles from the [Plough] Lane. We drink Champagne, we snort cocaine” – “Nós somos Wombles (como os torcedores do clube se autodenominam) do [Plough] Lane [nome original do estádio do clube]. Nós bebemos Champanhe, nós cheiramos cocaína”

Canto da torcida do Leicester City: “Jamie Vardy is having a party, bring your vodka and your Charlie” – “Jamie Vardy está dando uma festa, traga sua vodka e sua cocaína”

Nos últimos anos, eu ando antenado para este aumento no uso da droga, especialmente entre os jovens que viajam para ver o time jogar fora de casa – the away fans. Isto é um reflexo da sociedade na Inglaterra, onde o uso de drogas é problemático. Mas especialmente neste grupo demográfico, é chocante a quantidade e como a coisa está normalizada. Tenho falado sobre este fenômeno nas redes sociais, como neste fio de 2022 em minha conta no X (antigo Twitter).

Mas como jornalista e correspondente da ESPN, eu queria capturar um registro desta experiência. Decidi, então, tentar gravar uma entrevista com algum destes torcedores para o podcast Correspondentes Premier, também da ESPN.

E na volta de Manchester no último domingo (14) à noite, após United 2 x 2 Tottenham, pela Premier League, já após negociar com a “máfia dos taxistas” em frente a Old Trafford (eles tentam cobrar três vezes o preço normal da corrida para a estação, não aceitam as chamadas pelos aplicativos e não querem ir pelo taxímetro), consegui pegar o penúltimo trem para Euston, em Londres.

Mais uma vez, me deparo com grupos de torcedores viajando bêbados com caixas de cerveja e garrafas de vodka, se exaltando e falando sobre cheirar cocaína abertamente. Geralmente, iam em dois ao banheiro, mas, às vezes, era um ‘teco’ ali mesmo no vagão, como descrito no início deste texto.

Foi nesta viagem bagunçada, com torcedores sentados no chão e com cerveja do bar esgotada, que um torcedor topou falar comigo, embora sob anonimato, o que será respeitado.

Veja abaixo o diálogo com um torcedor do Tottenham
ESPN: Agora, são quase 10 horas da noite, que horas você começou a beber?

Torcedor do Tottenham: Tinha problemas com os trens hoje, então, a dedicação de um torcedor é testada. Trabalhamos duro para poder fazer isso [acompanhar o time em partidas fora de casa]. A brincadeira sai bem caro [só o trem custa mais de 100 libras, algo em torno de R$ 620]. Hoje, por exemplo, como moro fora da cidade [Londres], paguei um apartamento no centro, perto de Bond Street, para poder pegar o primeiro trem de Euston, às 8h12 da manhã.

Torcedor do Tottenham: Meu amigo gastou 120 libras em um táxi para a estação, porque ele também mora fora de Londres, em Hertfordshire, para me encontrar em Euston e pegar o trem de quatro horas para Manchester. Isto é dedicação, amigo. Então, foram alguns Jack e Coca [whisky Jack Daniels e refrigerante Coca-Cola] às 8h da manhã. Quatro horas de trem, amigo. Tem que abrir o apetite e matar os nervos.

ESPN: Muitos dos torcedores que viajam estão cheirando cocaína, certo? Qual a porcentagem de torcedores que usam esta droga nas viagens?

Torcedor do Tottenham: Pergunta difícil.

ESPN: Do que você vê e do que você sabe, quanto você diria?

Torcedor do Tottenham: Para onde vai isso?

ESPN: Um podcast no Brasil. Não vou falar quem você é, prometo.

Torcedor do Tottenham: Para os com menos de 30 anos, 80%. (80%) dos jovens nos jogos fora de casa. Em casa, não, aí é mais família, eu vou com o meu pai. Fora de casa, tem níveis diferentes, os com menos de 30 [anos], e os mais velhos que vão mais ao pub.

ESPN: Então, (você diria que) 80% dos com menos de 30 anos (usam cocaína)?

Torcedor do Tottenham: Isso soa mal.

ESPN: Eu sei que é uma realidade da sociedade, muita gente usa. Mas por que você acha que virou parte da cultura do futebol? Ou é algo mais geral?

Torcedor do Tottenham: Nos trens, você está com um grupo de pessoas. Você é forçado a sair muito cedo e tem que ficar o dia todo fora. Te ajuda a continuar, ter energia, ficar alerta. Para mim, faz parte da rotina dos jogos fora de casa, sempre.

ESPN: E tem muitas brigas nos jogos fora (de casa)?

Torcedor do Tottenham: Não tanto. Como torcedor do Tottenham, você nasce para detestar Arsenal , Chelsea e West Ham, mas o único que já vi briga e tive problemas foi no West Ham, é o pior, você imaginaria que seria o Arsenal, né, mas o West Ham é o pior.

Após cenas vergonhosas na final da Eurocopa em 2021, em Wembley, quando o estádio foi invadido e teve muita baderna nas ruas, o uso da droga foi mencionado em um relatório da FA (A federação de futebol inglês).

Representantes da polícia relataram que em todo o país a mistura de cocaína e álcool estava contribuindo para um aumento da violência relacionada ao futebol. Consequentemente, em 2022, o governo introduziu uma nova legislação que elevou a gravidade do uso de drogas no futebol (para “schedule 1” no Football Spectators Act), assim, o assunto passou a ser tratado com mais seriedade e rigidez pelas autoridades e pelas cortes.

Na temporada 2022/23, no Reino Unido, 200 pessoas foram presas em jogos de futebol com drogas (de classe A na Inglaterra) como cocaína.

A punição inclui banir torcedores dos estádios por até cinco anos. Em março de 2023, o West Ham suspendeu o carnê de dois sócios que foram filmados cheirando cocaína na careca de outro torcedor no London Stadium.

A cocaína é uma das drogas mais perigosas que existe, aumenta a frequência cardíaca e eleva a chance de infarto, mesmo em pessoas jovens. Com a persistência no uso de cocaína, é possível que ocorra:

Nervosismo extremo

Delírios

Insônias

Alucinações

Sangramentos pelo nariz

Perda de controle

Euforia

Agressividade

Além de tudo isso, a dependência começa a se tornar inevitável. Quando o uso da droga já se tornou contínuo, as reações se transformam em perda de memória, hemorragias, depressão, nervosismo excessivo, comportamento descontrolado e isolamento.

Os malefícios se tornam ainda mais sérios, como a destruição dos neurônios, lesões no fígado – como câncer hepático -, grande chance de infarto, esquizofrenia, mau funcionamento dos rins e dos nervos, doenças psíquicas e muito mais.

Fonte: ESPN