Esporte

Estádios inundados, calor infernal e mais: crise do clima atinge futebol

Vila Belmiro debaixo d’água. Copa do Mundo sob calor infernal. Futebol de base no mundo todo ameaçado. Competições inteiras comprometidas. A crise do clima já atinge em cheio o futebol, e o cenário é ainda pior para as próximas décadas caso não haja uma mudança de curso. Ainda dá tempo, mas é preciso urgência.

O Brasil viu neste ano como os eventos climáticos extremos estão mais violentos e mais frequentes. Ondas de calor, chuvas torrenciais, áreas de deserto, secas prolongadas, poluição do ar… Isso tem acontecido no mundo todo, principalmente por causa do aquecimento global.

Terra mais quente, futebol mais quente
Resumidamente, esse aquecimento é provocado pelos gases de efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2), que são lançados pela homem na atmosfera, através da geração de energia, fábricas, transporte, desmatamento e queimadas, entre outros .

Esses gases retêm o calor do sol — por isso o efeito “estufa” —, mudam o clima e perturbam o equilíbrio da natureza. Se a concentração deles aumenta, aumenta a temperatura da superfície da Terra.

As mudanças no clima estão reduzindo o tempo em que o futebol pode ser jogado a céu aberto, de acordom com estudos da Fifa e das Nações Unidas (ONU). O calor cada vez maior provoca exaustão e prejudica a qualidade do jogo. Temperaturas extremas deixam a superfície mais dura, o que aumenta o risco de lesões. Calendário e horários estão ameaçados.

— Muitas competições ocorrem ou começam durante os meses mais quentes do ano, em condições de calor cada vez mais desafiadoras por causa do aquecimento global. O corpo humano mantém uma temperatura central constante que geralmente varia de 36,1°C a 37,8°C. Em condições de calor extremo, os jogadores correm o risco de sofrer de distúrbios de estresse térmico, como cãibras, exaustão por calor ou insolação — disse Vincent Gouttebarge, chefe da equipe médica da FIFPRO, o sindicato mundial dos jogadores profissionais.

Além do calor: inundações dos campos
No último dia 18 de novembro, o jogo em Santo Domingo entre Bahamas e Guiana, pela Liga das Nações da Concacaf, foi adiado por causa das chuvas recordes que atingiram a República Dominicana — e provocaram pelo menos 30 mortes. Também no Caribe, a partida entre Jamaica e Canadá foi adiada por um dia.

Na Europa, o pé d’água provocou a mudança do local do amistoso entre Bélgica e Sérvia na última data Fifa de novembro, antes previsto para Bruxelas. O gramado do estádio Rei Balduíno ficou impraticável. Semanas antes, a partida entre Albânia e Irlanda pela Liga das Nações Feminina foi suspensa. Campo totalmente alagado.

Um quarto dos 92 clubes das quatro principais divisões da Inglaterra vão sofrer inundações parciais ou totais dos estádios nos próximos 30 anos. Casos do Estádio Olímpico de Londres e Stamford Bridge, do Chelsea.

O mesmo deve acontecer com o Weserstadion, do Werder Bremen, da Alemanha, e a Johan Cruyff Arena, do Ajax, na Holanda. É o que aponta o relatório “Jogando contra o Relógio”, do acadêmico David Goldenblatt, especialista no impacto da crise climática no futebol.

— As pessoas vão continuar jogando futebol até todos cairmos, mas o futebol com certeza vai enfrentar muitos desafios, riscos e ameaças. Já está, mas isso vai piorar nos próximos 30 anos. As projeções são péssimas. Estaremos em território desconhecido sobre como o clima e o ecossistema vão funcionar. Se você quiser um futebol organizado, isso requer um nível de estabilidade social e bem-estar econômico que vai ser complicado em várias partes do mundo — comentou Goldenblatt.

Emergência pior para os mais pobres
Essa crise é global, mas o mundo do futebol não é atingido da mesma forma. Jogadores, torcedores, clubes, federações e confederações com menos recursos são os mais impactados. A ONU fala que “milhões de atletas” já enfrentaram algum tipo de “perturbação climática”.

Na Inglaterra, um terço dos campos para as categorias de base perdem seis semanas por temporada, por enchentes ou condições adversas.

A próxima Copa Africana de Nações (CAN) será em janeiro, mas deveria ter acontecido entre junho e julho deste ano na Costa do Marfim. Foi adiada por causa do risco de temporais: “Não queremos correr o risco de ter uma competição debaixo de um dilúvio”, explicou o presidente da Confederação Africana de Nações (CAF), Patrice Motsepe.

Na edição de 2019 da CAN, o atacante Samuel Kalu foi levado para o hospital após colapsar durantre o treino da Nigéria, por desidratação. O extremo calor foi tema de alertas das associações de jogadores profissionais da Colômbia e do Chipre ao sindicato mundial da categoria.

A América Latina viu nos últimos meses o histórico estádio Azteca — do título mundial do Brasil em 1970 — ser tomado pela água, em setembro, antes do jogo do Cruz Azul com o América. Semanas antes, o estádio Fiscal de Talca, no sul do Chile, ficou inundado. O país registrou quase 40° C de temperatura nos Andes, em pleno inverno.

As pessoas mais afetadas pelas mudanças do clima são as que menos provocam o aquecimento global. Os 10% mais ricos da população do mundo são responsáveis por quase 50% das emissões de gás carbônico, o principal entre os gases do efeito estufa. Enquanto isso, os 50% mais pobres contribuem com 12%, segundo a ONU.

— A injustiça climática piora tudo. Os eventos climáticos extremos prejudicam diretamente as pessoas menos favorecidas. Essa desigualdade precisa ser combatida justamente para se encontrar a solução do problema. O planeta é um só — disse Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas da ONG WWF Brasil.

Segundo a Organização das Nações Unidas, as concentrações desses gases bateram recorde em 2022, agravando os impactos no clima.

O consenso internacional é que a temperatura média global não deve ultrapassar o limite de 1,5°C a mais do que na era pré-industrial do século XIX. Esse é o que os cientistas consideram como ponto de inflexão para o planeta. Só que isso pode acontecer em seis anos, se as emissões de gases do efeito estufa continuarem nesse ritmo.

Para não ultrapassar essa marca, as emissões teriam que cair 42% até 2030. Ou 28%, para 2°C, como previsto no Acordo de Paris. Essa diferença de 0,5°C pode significar aumento de 160% da população mundial exposta ao calor extremo.

No atual ritmo, caminhamos para um aquecimento global de 3°C até 2100. O mundo já registrou um dia com temperatura média global 2°C acima da era pré-industrial. E o ano de 2023 deve terminar com o pior nesse sentido em 125 mil anos.

Futebol: vítima e vilão?
A próxima Copa do Mundo será no Canadá, Estados Unidos e México, em 2026. As estimativas são que pelo menos seis das 16 sedes terão condições extremas de calor, segundo médicos da FIFPro, com temperaturas até 30°C e 35°C. Outras seis serão de “alto risco”.

A candidatura com três países diferentes foi considerada pela Fifa como de baixo risco para o clima, apesar da estimativa de emissão de 3,7 milhões de toneladas de carbono — a maior da história da Copa. As viagens correspondem a 85% disso. E a Copa de 2034 vai envolver seis nações, de três continentes distintos.

A indústria do futebol contribui anualmente com algo entre 0,8% e 0,9% das emissões globais, segundo estimativas do pesquisador David Goldenblatt. Pode parecer pouco, mas é o equivalente à uma nação como a Espanha ou a Polônia.

— A pegada de carbono da elite do esporte deve ser gigante, depende do é relatado. A Copa teve esse problema. A Fifa usou metodologias diferentes para torneios diferentes. Mas não há dúvida de que megaeventos esportivos têm muita emissão de gases do efeito estufa. A Fifa precisa cortar suas emissões pela metade até 2030. Se quer mostrar que é séria, precisa mostrar o caminho para fazer isso. Se não puder, estão só tocando bola na defesa e não atacando o problema de frente — afirmou Khaled Diab, diretor de comunicação da Carbon Market Watch, organização que fiscaliza políticas climáticas de governos e empresas.

Essas políticas estão no centro da Conferência das Partes (COP), encontro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que começou hoje nos Emirados Árabes Unidos e vai até 12 de dezembro. O evento tem o objetivo de apontar problemas, negociar acordos e encontrar soluções. Em 2023, serão mais de 70 mil delegados de 197 países diferentes. A Fifa não confirmou se o presidente Gianni Infantino estará presente.

Fonte: ge