A invenção de uma “Ideologia de Gênero” e os perigos da Lei Municipal de Campos dos Goytacazes
A recente aprovação da Lei nº 9.532, sancionada em 23 de outubro de 2024, pela Câmara de Campos e promulgada nesta semana pelo prefeito Wladimir Garotinho, estabelecendo o direito dos pais de vedar a participação de seus filhos em atividades escolares relacionadas à chamada “ideologia de gênero”, levanta sérias preocupações sobre a desinformação e o retrocesso no debate sobre educação e diversidade.
A lei define, de forma vaga e imprecisa, que qualquer atividade pedagógica relacionada à identidade de gênero, orientação sexual, diversidade sexual e igualdade de gênero será considerada parte de uma “ideologia de gênero”, que os pais podem proibir. O problema central dessa legislação é que a “ideologia de gênero”, termo utilizado frequentemente por movimentos conservadores e de direita, sequer existe como um conceito legítimo ou reconhecido pela ciência. O que, na verdade, se está tentando combater são as discussões sobre diversidade, direitos humanos e a própria realidade das pessoas transgênero, intersexuais e não-binárias, que fazem parte da sociedade, e que merecem ser tratadas com respeito e compreensão nas escolas.
O termo “ideologia de gênero” é uma construção discursiva usada por setores conservadores para desqualificar a legítima discussão sobre identidade de gênero e orientação sexual. Essa expressão foi amplamente disseminada para criar um fantasma a ser combatido, com a ideia de que a educação sobre gênero nas escolas seria uma forma de “doutrinação” ou manipulação ideológica, quando, na verdade, trata-se de uma abordagem pedagógica necessária para o pleno entendimento da realidade contemporânea.
Não existe uma “ideologia” que imponha qualquer tipo de doutrinação sobre gênero; o que existe são discussões acadêmicas e científicas sobre como a sociedade constrói e compreende as identidades de gênero. Tais discussões são abordadas em muitos países como parte da educação para a cidadania, inclusão e respeito às diferenças. A criação dessa falácia como um conceito político é um ataque à diversidade e ao direito dos indivíduos de viverem suas identidades de forma autêntica e sem discriminação.
Ao permitir que os pais decidam, por meio de uma autorização formal, se seus filhos ou tutelados podem ou não participar de atividades relacionadas à identidade de gênero ou orientação sexual, a nova legislação coloca em risco a função da escola como espaço de formação crítica e cidadã. A escola deve ser um ambiente plural, onde todos os alunos, independentemente de suas origens ou crenças, possam aprender a respeitar as diferenças e se informar sobre as realidades que cercam a sociedade. A educação sobre gênero e sexualidade não é uma “agenda política”, mas um passo fundamental para formar cidadãos conscientes e empáticos.
Em muitos casos, as crianças e adolescentes enfrentam dificuldades relacionadas à sua identidade de gênero ou orientação sexual, e a escola pode ser um dos únicos lugares seguros para que esses jovens recebam suporte. Ao vedar a abordagem de temas como diversidade de gênero, essa lei pode acabar criando um ambiente hostil e silencioso para aqueles que, muitas vezes, buscam apenas ser aceitos por quem são.
A imposição de restrições tão amplas sobre o que pode ou não ser discutido nas escolas, com base em uma noção equivocada de “ideologia”, é um exemplo claro de censura. Ao forçar as escolas a se adequarem à vontade de pais que, por razões pessoais ou religiosas, não desejam que seus filhos participem de atividades sobre gênero, a lei enfraquece a autonomia pedagógica e compromete a qualidade do ensino.
Educadores que trabalham com questões de gênero e sexualidade muitas vezes o fazem com o objetivo de proporcionar um ambiente seguro e inclusivo para todos os estudantes, promovendo valores como respeito à diversidade, igualdade de direitos e liberdade individual. Ao impor a necessidade de permissão por escrito dos pais para que esses temas sejam abordados, a lei cria uma barreira para a educação de jovens cidadãos e descredita o papel dos professores enquanto profissionais qualificados e preparados para lidar com essas questões de forma sensata e respeitosa.
Ao sancionar esta lei, a Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes não apenas coloca em risco a formação de uma geração mais inclusiva e empática, mas também pode estar reforçando preconceitos e estigmas que já estão presentes em boa parte da sociedade. A proibição de discussões sobre diversidade sexual e identidade de gênero nas escolas é uma maneira indireta de marginalizar os estudantes que, por qualquer razão, não se encaixam nas normas tradicionais de gênero e sexualidade.
Em vez de educar para o respeito, a empatia e a convivência pacífica entre as diferenças, a lei reforça a ideia de que há algo errado ou perigoso em se discutir essas questões abertamente, criando um ambiente onde jovens podem ser forçados a esconder suas identidades ou sentimentos por medo da rejeição ou do bullying. Isso é ainda mais prejudicial quando se leva em conta que muitas vítimas de violência doméstica, escolar ou de homofobia/transfobia podem encontrar nas escolas um espaço seguro para questionar sua identidade e buscar apoio.
A Lei nº 9.532 é um retrocesso significativo no avanço da educação inclusiva e da luta pelos direitos humanos. Ao tentar impedir o debate sobre gênero nas escolas, ela não só nega o direito dos estudantes a uma educação completa e plural, como também alimenta a desinformação e o preconceito. Mais do que isso, ao validar a falácia da “ideologia de gênero”, a legislação diminui o papel da escola como um espaço de reflexão, aprendizado e desenvolvimento de uma consciência crítica.
É fundamental que os gestores públicos de Campos dos Goytacazes repensem essa abordagem, promovendo, ao invés de restrições, uma educação mais aberta, respeitosa e inclusiva, que permita aos jovens entender a diversidade como um valor positivo e enriquecedor. A verdadeira “ideologia” que deve ser combatida é a do preconceito, da intolerância e da discriminação, que ainda permeiam muitas áreas da sociedade. E a educação é a chave para superá-la.