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Álbum póstumo do campista Wilson Baptista é lançado no streaming com sete inéditas

Autor de mais de 500 sambas, entre eles “Chico Brito”, “Meu mundo é hoje (Eu sou assim)”, e “Oh, seu Oscar”, o campista Wilson Baptista ganhou uma homenagem no disco duplo “Wilson Baptista – Eu sou assim”, do Selo Sesc, que chega agora às principais plataformas de música. São 30 faixas que, segundo o pesquisador, produtor e músico carioca Rodrigo Alzuguir, provocam um “nó no tempo”: a voz do próprio Wilson, que nasceu há 110 anos (e faleceu há 55), é recuperada por meio de registros caseiros feitos pelo artista em um gravador de rolo e em uma fita demo que ele gravou para o projeto de um LP da cantora Telma Soares em meados da década de 1960, que acabou não sendo lançado.

Wilson Baptista nasceu em Campos em 1913. Filho de um guarda municipal, ainda menino participou, tocando triângulo, da Lira de Apolo, onde tocava seu tio Ovídio Batista. Ainda na cidade natal, fez parte do Bando, para o qual compunha algumas músicas e, pretendendo aprender o ofício de marceneiro, frequentou o Instituto de Artes e Ofícios. No final da década de 1920, transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde passou a frequentar os cabarés da Lapa e pontos de encontro de marginais e compositores, tornando-se amigo dos irmãos Meira, malandros famosos da época, cuja amizade lhe valeu várias prisões. A seguir, começou a trabalhar como eletricista e ajudante de contrarregra no Teatro Recreio, ocasião em que, aos 16 anos, fez seu primeiro samba, Na estrada da vida, lançado por Aracy Cortes no mesmo teatro e gravado em 1933 por Luís Barbosa.

Popular até 1950, o músico já foi descrito por Paulinho da Viola como o ‘maior sambista de todos os tempos’, mas morreu esquecido aos 55 anos, em 1968. Seu primeiro grande sucesso aconteceu em 1933, “Lenço no pescoço”, na voz de Sílvio Caldas. O samba deu origem à posteriormente célebre polêmica com Noel Rosa — que não ficou pública na época. A figura do Noel é recuperada nos anos 50, quando a polêmica é recontada de uma forma que dignifica o Noel, como se ele tivesse sido contra a malandragem. Wilson fica com a pecha de vilão. Mas todos sabiam que a briga foi por causa de uma mulher de um cabaré da Lapa. Wilson levou a melhor, e Noel fez um samba, “Rapaz folgado”, para responder a “Lenço no pescoço”.

Álbum póstumo

O lançamento oficial do disco duplo aconteceu em dois shows no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, no início de agosto. Em Wilson Baptista – Eu sou assim, o material ganhou arranjos novos e muitas participações especiais. A lista é extensa e inclui nomes consagrados e novos, todos admiradores de Wilson: Alexandre Rosa Moreno, Ana Bacalhau, Áurea Martins, Ayrton Montarroyos, Beatriz Rabello, Cristina Buarque, Dori Caymmi, Filó Machado, Ilessi, João Bosco, Joyce Moreno, Larissa Luz, Lívia Nestrovski, Maíra Freitas, Marcos Sacramento, Mônica Salmaso, Moyseis Marques, Nei Lopes, Ney Matogrosso e Pretinho da Serrinha.

Entre os clássicos, além das já citadas, músicas que revelam a atemporalidade do compositor como a social “Pedreiro Valdemar”, canção de 1948 que fala do operário que constrói casas para muita gente e não tem uma para morar e “Nega Luzia”, aquela que “recebeu o Nero” e “queria botar fogo no morro”.

“Além das faixas ‘lado A e B’ do artista, o álbum inclui sete músicas inéditas do Wilson, garimpadas por mim e gravadas aqui pela primeira vez. São elas: ‘Calúnia’, ‘Boato de felicidade’, ‘Fui olhar nos teus olhos’, ‘O bom é ele’, ‘Minha infância’, ‘Sossega a moringa’ e ‘São Paulo antigo’”, conta Rodrigo Alzuguir, que também assina uma biografia do artista, lançada com o título “Wilson Baptista, o Samba Foi a sua Glória” (Casa da Palavra).

Eu sou assim, por Rodrigo Alzuguir

Um ou dois anos antes de morrer, Wilson Baptista e um amigo violonista se juntaram para gravar uma fita-demonstração. Era destinada a Thelma Soares, jovem cantora alagoana radicada no Rio, que se interessara em conhecer o repertório do compositor.

Aprumada nas noites musicais de Copacabana, Thelma era uma aposta de bambas como Baden Powell e Vinicius de Moraes. A essa altura, fins dos anos 1960, suas aventuras fonográficas incluíam participação em Pobre menina rica, o lendário álbum das parcerias de Carlos Lyra e Vinicius; um disco de estreia produzido por Marcos Valle e Vinicius; e um maravilhoso tributo a Nelson Cavaquinho, o primeiro LP da história totalmente dedicado ao compositor. Lançado timidamente, Thelma Soares canta Nelson Cavaquinho se tornaria em pouco tempo item de colecionador.

O produtor desse último trabalho, o múltiplo jornalista Sergio Porto, teve a ideia de seguir gravando Thelma à frente de songbooks de samba. Foi aí que veio à baila o nome de Wilson como possível próximo homenageado – e também o de seu primo Cartola. Sambistas veteranos começavam a ser redescobertos naqueles anos 1960 por uma inquieta intelectualidade de esquerda, e a mente dos diretores de gravadora se abriam a projetos como esse.

A notícia do disco chegou até Wilson, que se empolgou. Bom cantor, embora jamais tenha gravado um mísero fonograma solo, ele se colocou diante de um gravador e registrou um apanhado de obras suas, entre sucessos, raras e inéditas. Tudo feito de improviso, sem ensaio, com acompanhamento do violonista Manuel da Conceição, o Mão de Vaca. Por tudo o que representa, o material se tornaria um tesouro escondido da nossa música – inclusive para que a gente, no futuro, pudesse saber quais itens de seu cancioneiro Wilson mais curtia, ou considerava “tiros certos”. Seu catálogo talvez seja o maior da sua geração, com mais de 550 músicas por mim reunidas até o momento, incluindo dezenas de sucessos que os maiores cantores do seu tempo disputaram para levar ao disco.

Wilson abre a fita com “Nega Luzia”, aquela que “recebeu o Nero” e “queria botar fogo no morro”. Na sequência, exibe um apanhado de clássicos (como “Mãe solteira”, “Chico Brito”, “Louco (Ela é seu mundo)”), joias então menos conhecidas (como “Flor da Lapa”, “Meu mundo é hoje”, “Despedida cruel”) e itens que ansiava por tirar das gavetas (como “São Paulo antigo”, “Rosa negra”, “Se eu fosse presidente”). Faz poucas repetições das partes musicais, indo direto ao ponto, como quem apresenta a essência de cada obra sem querer tomar o tempo do ouvinte. Mantém a afinação estoicamente, mesmo quando a harmonia, intuída pelo acompanhante, percorria caminhos tortuosos.

Ao fim da gravação, feita com garra, voz bem timbrada e alguma perseguição do violão, Wilson escreveu na etiqueta da fita de rolo: “Para Thelma”. E nada aconteceu. A bordo de um romance incendiário, Thelma viajou com o amado para a Europa e pôs a carreira em modo de espera, para frustração também de Sergio Porto. E a fita?

Multiplicou-se. Paulinho da Viola encontrou uma cópia na gaveta de uma emissora de rádio, no início dos anos 1970. O encontro resultou nas gravações belíssimas que fez de “Mulato calado”, “Chico Brito”, “Nega Luzia” e do samba que, de tão atemporal, muita gente acha que é do Paulinho, “Meu mundo é hoje” (Eu sou assim/ Quem quiser gostar de mim, eu sou assim…). Paulinho, encantado por Wilson muito por conta da fita para Thelma, disse naqueles anos, num especial da TV Globo, que se tratava do maior sambista de todos os tempos.

Outra cópia da demo para Thelma foi parar, não se sabe como, nas mãos do produtor Fernando Faro, que fez cópia da cópia para a amiga Cristina Buarque. Foi daí que Cristina pescou “Flor da Lapa”, gravada lindamente em seu LP Arrebém, de 1978, com Cristovão Bastos ao piano. Cristina, pouco mais de duas décadas depois, não por acaso, faria o que Thelma não fez: gravou o primeiro tributo a Wilson, Ganha-se pouco, mas é divertido, título de um samba-choro do compositor, sensacional, lançado pela cantora que mais gravou músicas dele, Aracy de Almeida.

O produtor do disco-tributo de Cristina foi o poeta Herminio Bello de Carvalho. Pois bem, uma cópia da tal fita de rolo também chegou às mãos de Herminio em fins dos anos 1970, mas ele não lembra como. O que sabe é que usou um trechinho desse material num LP da Funarte, misturado a uma gravação posterior de Clementina de Jesus. O dito LP, O samba foi sua glória, fazia parte de um combo que incluía um show itinerante com Joyce Moreno e Roberto Silva, em 1985.

Herminio tentou marcar um encontro com Wilson em fins dos anos 1960 – primeiro passo para talvez o incluir em algum projeto. O lugar marcado, por telefone, foi o restaurante e uisqueria Gouveia, na Travessa do Ouvidor, o point de Pixinguinha e João da Baiana no centro do Rio. Mas Wilson, desgastado, não estava para isso. Marcou e não apareceu.

Faleceu em julho de 1968, de cardiomiopatia dilatada, ou “coração de boi”, como se dizia. Foi no hospital Souza Aguiar. O enterro se deu à noite, solicitação do morto, que também exigiu estar vestido de smoking. Noite de lua cheia, memorável para os poucos amigos presentes que cantaram “Oh, seu Oscar”, entre outros sucessos de sua autoria, à beira do jazigo da União Brasileira de Compositores, onde seu caixão foi sepultado.

Os últimos anos de Wilson Baptista foram dose para leão. Essa coisa do brasileiro não honrar os seus ídolos – muito menos os pretos, de origem humilde.

Imenso sucesso nos anos 1940 e 1950, Wilson se orgulhava de ser compositor. Mas o preconceito contra a atividade era tanto, especialmente em se tratando de um negro, que os próprios parceiros brincavam nas entrevistas: “Wilson? Nunca trabalhou!”. Pasmem: ele, dos mais profícuos compositores brasileiros, nunca trabalhou. Música não era trabalho?

Os amigos de Wilson, na maturidade, tinham largado a boemia e dividiam-se entre família e cargos administrativos em editoras, sindicatos e sociedades de autores, compondo em ritmo menos intenso. O Café Nice, segunda casa de Wilson e ponto de encontro de sua geração, tinha fechado as portas. O carnaval, apossado pelas escolas de samba, pouco rendia. As turmas, os points e as febres musicais iam e vinham. O baião. O bolero. A bossa. O iê-iê-iê. Os festivais.

Wilson, obstinado, continuou fiel ao seu estilo de vida – zanzando pelos bares do centro, sofrendo pelo Flamengo, seu time de fé, e compondo como se o mundo fosse acabar amanhã.

Pena que a mídia da época enterrou-o antes do tempo – como fez a toda a sua geração, salvo raras exceções especialmente dotadas na lida com um mercado musical cada vez mais voraz. Quando Wilson faleceu, aos míseros 55 anos, os jornais o chamaram de “sambista da velha guarda”. Hoje isso está mudado. Artistas de oitenta anos continuam na ativa, admirados por todos. A exemplo de Paulinho da Viola.

Wilson teve três filhos com três paixões diferentes, mas terminou sozinho num modesto apartamento na rua Senador Dantas, em meio ao entra-e-sai intenso de namoradas, que apresentava aos filhos como “artistas”. Na gaveta, deixou um caderno transbordando de músicas inéditas.

Já perto do fim, deram a ele um cargo na sociedade de autores: fiscal de execução. Sua função era ouvir o rádio e anotar as músicas irradiadas. Ali, Wilson teve certeza de que o seu tempo passara. Ninguém mais cantava as suas músicas.

Imagino que esse fosse o seu estado de ânimo ao se colocar diante do gravador de rolo para gravar uma seleção de músicas suas para Thelma, com Mão de Vaca ao violão. Sozinho. Longe do rádio, do disco, das rodas, do público. Achando-se esquecido e injustiçado. “Não tenho voz para dizer tudo o que quero”, ele disse a Ricardo Cravo Albin, ao negar um depoimento para o Museu da Imagem e do Som, alguns meses antes de partir.

Talvez tivesse alguma esperança na repercussão do disco de Thelma. Talvez voltasse a ser respeitado, como começavam a ser Cartola, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e outros sambistas veteranos. Mas Wilson não teve direito às merecidas flores em vida, como tiveram seus colegas na década seguinte – não teve paciência para esperar e pulou do barco.

Mais de cinquenta anos depois da gravação para Thelma, consegui, enfim, realizar o sonho de ressignificar esse material – que, afinal, acabará sendo não para ela, mas para o planeta. Aquela sessão informal virou disco, como gritava para ser.

Tecnicamente falando, a voz de Wilson foi tratada para que soasse da melhor forma possível, e infelizmente tivemos que abrir mão de alguns trechos da fita, comprometidos pelo tempo. Suprimimos o violão acompanhante, e arranjos atuais foram gravados, com respeito e reverência, para acomodar a sua voz. Ampliando a ideia original, convidamos outros artistas para cantar raras e inéditas de Wilson – às vezes, em dueto com o próprio. Wilson Baptista – Eu sou assim, coleção de 30 faixas estalando de novas, vem à luz agora, nos 110 anos de nascimento do compositor.

*Com informações do Sesc