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Eldorado, a cidade onde se encontraram as histórias de Bolsonaro e a família Rubens Paiva, retratado em ‘Ainda estou aqui’

Em Eldorado Paulista, há uma pequena praça onde os sinos da igreja tocam de meia em meia hora. Ali, debaixo de árvores de copas largas, moradores conversam preguiçosamente, protegendo-se do sol. As lojas e restaurantes dos arredores ficam vazios nas tardes quentes, quando a cidade parece inabitada. Só meninos arriscam-se na rua, rumo ao rio Ribeira.

Nada nessa cena fala de Jair Bolsonaro. Mas ele está por toda parte.

Para encontrar vestígios do presidente em Eldorado, no interior de São Paulo, onde ele morou dos 11 aos 18 anos, é necessário olhar para além do espaço. É preciso recorrer à história.

Naquela praça, em 1970, o guerrilheiro Carlos Lamarca baleou três pessoas em um tiroteio com a polícia militar enquanto Jair, então com 15 anos, corria para casa. O adolescente, que havia saído da escola, testemunhou de perto a operação de caça a Lamarca, que o levou a alistar-se no Exército.

Dentro da igreja, durante anos, negros dos quilombos de Eldorado ocuparam os últimos bancos, com medo de serem expulsos da frente do altar – os mesmos quilombolas que, para Bolsonaro, “não servem nem para procriar”, como disse em uma palestra em 2017.

Uma das torres do santuário foi doada por Jaime Almeida Paiva, homem mais rico e “coronel” da pobre Eldorado por vinte anos. Dono de uma das maiores fazendas do Vale do Ribeira, “Dr. Jaime” era pai do deputado opositor à ditadura e desaparecido político Rubens Paiva, alvo de acusações de Bolsonaro durante toda a vida pública do ex-presidente, e retratado agora no filme “Ainda estou aqui”.

Apesar de Bolsonaro ter nascido em Glicério e vivido em várias partes do Estado de São Paulo, é em Eldorado que alguns de seus temas favoritos têm origem.

O domínio dos Paiva
Bolsonaro é um grande crítico de Rubens Paiva, ex-deputado federal que fez oposição ao regime militar e desapareceu em 1971. Paiva aparece com frequência nas falas do presidente sobre a ditadura, um dos temas recorrentes em seus discursos.

No plenário da Câmara, Bolsonaro chegou a negar que o deputado tenha morrido durante uma sessão de tortura, como foi atestado pela Comissão Nacional da Verdade, e, ao longo dos anos, fez várias acusações contra ele. Uma delas é a de que Rubens Paiva ajudou o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca a montar uma guerrilha no Vale do Ribeira, onde fica Eldorado. Não há provas de que essa colaboração tenha acontecido.

“Por coincidência, a família de Rubens Paiva tinha uma fazenda na cidade de Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira, São Paulo, chamada Fazenda Caraitá. O sr. Rubens Paiva fez com que o guerrilheiro, traidor e desertor Lamarca ocupasse a sua fazenda e lá fizesse uma base de guerrilha”, disse Bolsonaro em sessão de 2013.

A fazenda Caraitá sustentou a economia de Eldorado por mais de vinte anos. O “doutor” Jaime Paiva, como moradores ainda chamam o empresário de Santos que se tornou um grande fazendeiro do Vale do Ribeira, começou a comprar terras ali em 1941. Sua propriedade só foi vendida em 1975, depois de Bolsonaro mudar-se para Resende (RJ), onde começou sua carreira militar.

Enquanto o ex-presidente morava na cidade – e por muitos anos antes disso –, Jaime Paiva era o chefe de boa parte da população. Ele tinha plantações de banana e laranja, criações de gado e uma serraria de móveis, além de ser responsável pela vida social do lugar: a festa da Rainha da Laranja, a mais importante do ano, era organizada pela família.

Mais do que uma liderança informal, Paiva foi prefeito duas vezes. Na primeira, de 1956 a 1959, fez a ponte sobre o rio Ribeira e uma das escolas locais. Na segunda, em 1968, eleito pela Arena, partido da ditadura, ficou pouco menos de um ano.

“Teve uma Eldorado antes e uma depois do Paiva”, diz Nilzilene Araújo de Oliveira, de 56 anos, vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, onde Bolsonaro estudou até ir para o Exército, em 1973. Enquanto o presidente e Nilzene eram alunos, no entanto, o colégio chamava-se Ginásio Escolar de Eldorado Paulista. A homenagem ao “doutor” veio só em 1976.

“Mas do ponto de vista econômico, Eldorado desenvolveu muito com o velho Paiva”, Nilzilene continua. “Embora ele fosse forte, bem firme… mas isso era necessário porque ele era capitalista.”

Enquanto ela fala, a ficha do ex-colega está à mostra sobre a mesa da secretaria. O fato parece deixar o diretor da escola, Domingos Pontes Junior, incomodado. “Melhor não tirar foto, não. Não tem autorização da família”, ele diz, sentado ao lado da vice. “Melhor só anotar. Sabe, são notas parciais, no segundo ano ele foi melhor”, Domingos sacode a cabeça.

No primeiro ano do ensino médio, Estudos Sociais (combinação de geografia e história) foi a melhor matéria de Bolsonaro: 8,7. Em Educação Moral e Cívica, disciplina criada durante a ditadura e que exaltava o nacionalismo, teve um de seus piores desempenhos (6,8), ao lado de Química (6,5).

Não há registros dos filhos ou netos de Paiva nos mesmos arquivos. Rubens Paiva tinha 12 anos quando o pai comprou as primeiras terras por ali – ele e os irmãos estudaram em colégios de elite em São Paulo.

“Não se tinha acesso ao Paiva, só aos empregados”, Nizilene retoma o assunto. “Eram muito ricos… mas ele fazia a festa da Rainha da Laranja e todos iam.”

Pouco antes, na mesma secretaria, um professor de História aposentado falava dos “dois lados” de Paiva.

“Foi um marco histórico – para o bem e para o mal. Como todo mundo trabalhava lá, quando a fazenda fechou, a cidade entrou em decadência. Mas ele era amado e odiado, sabe?”, disse José Milton Galindo.

O tom é frequente nas declarações sobre o empresário que fez fortuna em Santos, como despachante. De um lado, ele era o homem visionário que alargou as ruas da antiga área de garimpo – Eldorado foi batizada assim em razão do primeiro ciclo do ouro no Brasil –, desenvolvendo o urbanismo local. De outro, era o coronel autoritário que não conversava com o povo, trazia empregados do Nordeste no pau de arara e pagava os funcionários com “boró”, moeda própria que só valia nos comércios da região.

“Quando tinha a festa da Laranja, se ele cismava com a pessoa, quebrava o copo na mão dela com a bengala. Andava cheio de capangas em volta”, diz Antônio Carlos de Melo Cunha, de 64 anos, engenheiro agrônomo aposentado e amigo de Jair Bolsonaro dos tempos de colégio. Foi de seu avô que Paiva comprou as terras da fazenda.

Em livro sobre o caso de Rubens Paiva, Segredo de Estado, o jornalista Jason Tércio narra que até o deputado chamava o pai de “coronel” e discutia com ele sobre política. Em diálogo reconstruído por Tércio durante a Ceia de Natal de 1970, na fazenda Caraitá, Jaime teria dito a Rubens: “a única política que tu deve fazer com os militares é a política da boa vizinhança”.

Filho do deputado, o escritor Marcelo Rubens Paiva conta que o pai era brigado com o avô e por isso ia pouco à fazenda. Ele diz que não sabe responder aos comentários sobre Jaime, porque morava no Rio com os pais e a irmã.

“Querida, meu avô foi prefeito. Não sei se quebrou copos nas pessoas.”

Nessa época, Rubens havia voltado do exílio há anos, depois de ter seu mandato pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) cassado após o golpe de 1964, e trabalhava como engenheiro civil. No entanto, ele ainda ajudava perseguidos políticos a sair do país e mantinha contato com exilados.

Menos de um mês depois daquele Natal, em janeiro de 1971, Rubens Paiva seria levado por militares para depor e não voltaria mais.

A casa da fazenda – e o resto da cidade
“Ato Contínuo, 1970. Aí, eu entro na história”, disse Bolsonaro durante uma sessão da Câmara em setembro de 2014.

“Eu tinha 15 anos de idade e morava na cidade de Eldorado paulista. Ali – já mudou de nome – existia a Fazenda Caraitá. Proprietário: família Rubens Paiva. Rubens Paiva tinha uma chácara ali. Do cocoruto, do topo da cidade de Eldorado Paulista, cidade bastante pequena, via-se a chácara de Rubens Paiva, a montante do Ribeira de Iguape…”

A dois quilômetros do centro de Eldorado, a fazenda, que não se chama mais Caraitá nem pertence aos Paiva, ainda está de pé. Hoje ela é de um produtor de bananas, que usa a terra para plantação, mas não mora ali. Apesar de descuidado, o casarão de teto europeu mantém os ares de “mansão”, como era chamado pelo povo da cidade.

As paredes azuis, brancas na época de Rubens Paiva e Bolsonaro, ainda exibem as sacadas estreitas que permitiam aos hóspedes uma vista privilegiada do grande jardim e, à esquerda, dos hectares de mexericas e bananas.

Os quartos são oito ou nove, pequenos, segundo os filhos do atual proprietário, que oferecem apenas um tour pelo terreno porque a casa está fechada. Nele, há, como havia nos anos 1960, duas piscinas – adulta e infantil –, uma casa de hóspedes e outra de bonecas, uma casinha de cachorro em forma de castelo, e um mirante para dois lagos artificiais. Na casa de bonecas, de dois andares, com sala, cozinha e quarto com varanda, mesas e cadeiras em miniatura ocupam o espaço perto da porta, como se alguém ainda brincasse por lá.

Antes de entrar pelo alto portão de ferro que demarca o espaço do casarão, percorre-se uma estrada de terra. Paralelas a ela, à direita e à esquerda, pequenas casas de arquitetura semelhante estão enfileiradas.

“Tinha dezenas de casas aqui”, diz um dos filhos do proprietário, ao parar sua caminhonete em frente ao portão. “Eram dos funcionários do Paiva. Isso aqui era uma cidade, tinha até escola.” A maior parte das construções está abandonada – poucas estão ocupadas por empregados do dono atual.

Sem muita gente por ali, o único barulho vem de Lala e Laica, cadelas pastor alemão que respiram ofegantes debaixo da caminhonete. “Como ficou sem vigia, o pessoal acabou roubando até os tijolos, por isso só tem essas”, o jovem diz, secando o suor da testa. A temperatura beira os 40ºC.

A relação de Eldorado com os Paiva era, de alguma forma, dividida pelo portão da fazenda. Do lado de fora, para além do bairro privado dos funcionários, a vida do povo seguia alheia aos luxos do casarão. O Vale do Ribeira era e ainda é uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo, com uma renda média de dois salários mínimos, segundo o IBGE.

Nos anos 1970, a situação era mais dramática. O emprego fora de Caraitá era escasso e o dinheiro, difícil. As famílias pobres se viravam como podiam: pescavam, vendiam produtos de porta em porta, cuidavam de fazendas.

No caso dos Bolsonaro, o patriarca Percy Geraldo Bolsonaro trabalhava como dentista prático: fazia extrações, obturações, próteses, mesmo sem ter instrução universitária. Percy era a única opção numa comunidade sem dentistas e chegou a ser indiciado em inquérito policial por “exercício ilegal de medicina, odontologia ou farmácia”, mas foi absolvido em 1973.

Boa parte das pessoas entrevistadas em Eldorado teve dentes extraídos por Percy, de quem lembram com carinho. “A gente era muito humilde na época, então os dentes iam estragando e o pai mandava tirar”, conta a vice-diretora Nilzilene. “Geraldo era uma pessoa maravilhosa. Quando eu tinha uns 8, 9 anos, fui tirar um dente com ele. Depois que acabou, ele disse para minha mãe: ‘Agora leva a menina pra tomar um sorvete’.”

Apesar de trabalhar muito, os ganhos de Percy Bolsonaro nem sempre eram suficientes para sustentar a mulher e os seis filhos. Fumando um cigarro atrás do outro no pequeno consultório, às vezes ficava até tarde da noite com o ‘buticão’ – um grande alicate de ferro – em mãos, arrancando molares. Ao final do serviço, era compreensivo com os clientes que não podiam pagar: quem não tivesse dinheiro, que desse galinhas ou porcos.

“Eles eram muito pobrezinhos, milha filha”, diz Lúcia Lima Melo, de 72 anos, do portão da casa onde mora há 47 anos, ao fim da entrevista com ela e seu marido, Reinaldo. Durante anos, eles foram vizinhos dos Bolsonaro, e Reinaldo tornou-se amigo de Percy.

Ele contou que o dentista prático era conhecido por seu senso de humor e educação. Era atencioso, mas também não perdia a piada. Chamava os conhecidos de “morfiosos”, outro jeito de dizer “leprosos”, explicou o vizinho. Reinaldo riu ao lembrar as tiradas do amigo, como quando ele repetia que “preferia ter as filhas todas prostitutas do que filhos viados”.

“Quantos quartos têm ali?”, a reportagem pergunta a Lúcia, ainda no portão. A antiga casa dos Bolsonaro, hoje pintada de azul claro, é a próxima, à direita.

“Acho que só dois”, ela responde, olhando para o lado.

“Então era pequeno para a família”, a reportagem diz.

“Eles não tinham dinheiro, não”, ela abaixa a voz. “Não faltava comida, mas bens eles não tinham: carro, casa. Eram pobres mesmo. Mas que bom que graças a Deus chegaram onde chegaram, né”, ela sorri por entre as barras de ferro.

Para ajudar em casa, Jair pescava e buscava maracujá no mato para vender, além de descarregar caminhões de adubo e, numa brincadeira cheia de desejo, procurava ouro nos ribeirões pela madrugada.

Vivendo no aperto, a maioria da população precisava coexistir com a riqueza dos Paiva, numa convivência descrita como amigável por alguns e distante por outros. Os últimos argumentam que a relação era boa só para os “puxa-sacos” da família, muitos deles membros da Igreja. Como Aracy, mulher de Jaime, era católica fervorosa, padres e coroinhas que iam rezar missa na fazenda acabavam se aproximando do casal.

“Fui amigo dos netos de Paiva. Conheci Rubens Paiva, convivi com Marcelo e os irmãos”, diz Antônio Avelino de Melo Cunha, policial aposentado e dono de uma pousada em Eldorado que hoje mora no litoral paulista.

“Na época, eu era coroinha e ia rezar missa na fazenda. Doutor Jaime e Dona Ceci (como Aracy era chamada) me convidavam para almoçar ou jantar com eles. Aí foi estreitando nossa amizade. Eu usava o lago para brincar, tinha um aquaplano. Ficava na piscina, tocava violão. Era uma fazenda-cidade.”

Assim como Antônio, o agricultor Celso Luiz Leite, de 63 anos, cuja irmã casou com um dos irmãos de Bolsonaro, era coroinha. Ele se lembra de Aracy abraçando-o depois das missas. Se “doutor” Jaime tinha fama de durão, sua mulher era vista com benevolência.

“Quando o resto da família vinha para cá, nos finais de semana e férias, eu ia lá ajudar nas missas, já que o padre era puxa-saco. Mas ela era muito simpática”, diz Celso, sentado em seu sítio, às margens do Ribeira.

Celso dá de ombros ao falar que o fazendeiro “não dava muita bola para gente”.

“Só para a turma com mais grana… mas, por outro lado, era ele quem dava emprego.”

Apesar de não ser um cara “ruim”, como Celso repete, Jaime e sua família não eram sempre bem vistos pelos moradores. Entrevistados descreveram que nos meses de verão, quando filhos e netos visitavam a fazenda, era comum ver os Paiva cavalgando seus cavalos de raça pelas ruas.

Recostado em seu sofá, Antônio Carlos, um dos amigos de infância de Bolsonaro, tenta encontrar uma palavra para definir a família. “Eles eram… como eu posso dizer?”, ele coça a cabeça enquanto sua mulher o observa da porta da cozinha. “Eles eram… vistos com outros olhos! O pessoal via como gente rica, né.”

Antônio fala de uma vez em que visitou a fazenda para fazer companhia a uma das netas de Jaime Paiva, que estava se tratando de uma leucemia. Adolescentes, ele e a mulher foram até lá com alguns amigos para conversar com ela e tocar violão.

“Nessa época, íamos por causa da doença dela, mas não tínhamos amizade com eles, não”, diz sua mulher, Mara Cristina, apoiada no batente da porta. “Os jovens de lá não davam muita bola para os daqui.”

Por “lá” também passava Rubens Paiva que, segundo relatos dos moradores entrevistados, tinha uma chácara anexa à do pai com uma pista de pouso para chegar à cidade de avião. Após a publicação desta reportagem, o filho de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, disse que a chácara não pertencia a seu pai, mas a seu tio Carlos e que a pista de pouso ficava na cidade vizinha de Registro e não em Eldorado. No cartório registro de móveis, onde não teve acesso aos documentos sobre as terras, mas apenas foi informada que a família começou a comprar terrenos na região em 1941 e vendeu a propriedade em 1975.

Um dos moradores de Eldorado mais próximos do presidente, o funcionário público aposentado João Evangelista Correa, conta do dia em que entregou um bolo a Rubens a pedido da confeiteira local. Ele e um colega caminharam os dois quilômetros até a fazenda na esperança de ganhar um trocado pelo serviço. Chegando lá, João diz que Rubens olhou irritado para os meninos: “o que vocês querem aqui? Falei que ia buscar na cidade”. Ao responderem que a confeiteira havia prometido uma gorjeta, teriam ouvido um “não” resoluto.

“Não tinha amizade com pobres”, diz João Evangelista, das cadeiras estofadas que ficam em sua garagem.

Ele é um dos poucos que narra interações de Bolsonaro com os Paiva, já que quando adolescente Jair não era um grande frequentador das festas da Rainha da Laranja ou do clube Caraitá, fundado pela família. Seus conhecidos dizem que ele preferia pescar a ir a bailes.

Bolsonaro: ladrão de mexericas dos Paiva

João conta que, apesar da eventual irritação, Rubens convidava os meninos para jogar futebol nas terras da família. Bolsonaro teria participado de algumas partidas.

Quando parlamentar, ao citar mais uma vez as supostas relações entre os Paiva e o guerrilheiro Carlos Lamarca, Bolsonaro disse que conheceu o ex-deputado.

“Eu sou paulista do Vale do Ribeira, de Eldorado. Ali conheci Rubens Paiva, com 10 anos de idade”, disse em sessão da Câmara de março de 2016.

Além de jogar bola na fazenda de Rubens, Bolsonaro teria sido, nas palavras do agricultor Celso Leite, “um dos maiores ladrões de mexerica da família Paiva”. Ele conta isso aos risos, explicando que os furtos, comuns entre os meninos locais, eram “só farra mesmo”. Para proteger sua plantação, Jaime Paiva teria colocado um vigia de plantão e um cão de guarda, que teria corrido atrás de Celso e de Bolsonaro enquanto os meninos fugiam em direção ao rio.

“Íamos de canoa até um lugar que tinha uma laranja muito boa. Quando o cachorro latia, a gente pulava n’água.”

Bolsonaro não parece ter memórias felizes dos Paiva. A biografia Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro, escrita por seu filho Flávio Bolsonaro, indica que as diferenças de classe incomodavam o presidente.

No livro, Flávio escreve que “parte considerável do território da cidade de Eldorado Paulista era de domínio particular, uma fazenda enorme chamada Caraitá – que hoje seria um latifúndio”.

Na mesma página, é mencionada a chácara de Rubens Paiva, que aparece como irmão e não como filho de Jaime Paiva – Rubens tinha um irmão chamado Jaime, mas este não era dono da fazenda, como dito na biografia.

Nessa chácara, escreve Flávio, “tinha piscina, algo raro à época, mas que não era socializada com a criançada da vizinhança – que ficava apenas admirando, de longe, onde os filhos da família Paiva se refrescavam”.

Mito ou Verdade ainda narra que os filhos de Rubens Paiva eram da mesma faixa etária de Bolsonaro e, “não raras vezes”, eram vistos comprando picolés Kibon em Eldorado, “inacessíveis à garotada local, que ao ver um deles jogar o palito fora, corria na expectativa de estar premiado com ‘vale um picolé’ marcado na madeira”.

Sobre esse episódio, um dos filhos de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, diz que “não tomava sorvete” e “não tinha irmãos”, mas apenas irmãs.

“Talvez ele me confunda com meus primos”, ele diz. “Quando ele tinha 16 anos, eu tinha 11 e foi a última vez que fui a Eldorado.”

No parágrafo seguinte do livro é citada, de novo, a suposta ligação entre os Paiva e Lamarca que, por sua afinidade com a família, teria escolhido uma área próxima à fazenda para montar a guerrilha. A afirmação foi feita em vários discursos de Bolsonaro na Câmara.

“A verdade está lá em Eldorado Paulista!”, Bolsonaro disse no plenário da Casa em fevereiro de 2013. “Está todo mundo vivo lá. A Fazenda Caraitá está em cartório. A base de renda do Lamarca está lá na fazenda da família Paiva. É muito fácil verificar isso.”

Em visita ao registro de imóveis da cidade, a BBC News Brasil confirmou que a compra e venda da fazenda estão, sim, documentadas. Mas nada indica que os Paiva tenham fornecido recursos a Lamarca. Nem os antigos amigos do presidente, João Evangelista e Antônio Carlos, dizem conhecer essa versão da história.

“Nunca ouvi falar que financiava o Lamarca, não”, disse Antônio quando perguntado sobre o tema.

Apesar de não haver indícios de ajuda financeira, o guerrilheiro chegou a cruzar as terras da família durante sua fuga, em 1970, como escreveu Marcelo Rubens Paiva em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo em 1994.

“Meu tio Jaime acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força Pública de Eldorado (…) O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras.”

Depois do tiroteio, conta o escritor, a fazenda foi invadida por soldados que procuravam armas e tentavam estabelecer conexões entre os Paiva e Lamarca. Segundo ele, empregados e amigos da família chegaram a ser presos e torturados, e Carlos levou um tiro no pé acidental em uma das barreiras para cercar Lamarca.

À BBC News Brasil, Marcelo Rubens Paiva disse que a família não tinha nenhuma relação com Lamarca e que seu pai era contra a luta armada.

“Ele não era comunista, mas do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e se elegeu deputado pelo PTB.”

As teorias de Bolsonaro sobre esses dois personagens se estendem até ao desaparecimento de Rubens Paiva. Ele argumenta que o ex-deputado não foi morto por agentes da repressão, mas por membros da esquerda comandada por Carlos Lamarca. Segundo Bolsonaro, o grupo de Lamarca teria chegado à conclusão de que ele foi denunciado por Rubens Paiva depois que este foi preso.

“Ninguém resiste à tortura (…). Então, o grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado”, disse Bolsonaro na Câmara em março de 2012. “E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas.”

Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um documento inédito do Arquivo Nacional sobre as circunstâncias da morte do ex-deputado. O coordenador da Comissão, Claudio Fonteles, afirmou “não haver dúvidas” de que Paiva fora torturado e morto nas dependências do DOI-Codi do Rio.

Às palavras de Bolsonaro somam-se ações que marcaram sua animosidade contra os Paivas. Em um relato publicado no Facebook em outubro, o neto de Rubens Paiva, Chico Paiva Avelino, diz que, em 2014, o então parlamentar do PP cuspiu no busto que a Câmara inaugurava em homenagem a seu avô. No texto, Chico diz que sua mãe e tia faziam discursos emocionados quando foram interrompidas.

“Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado.”

A BBC News Brasil procurou o Palácio do Planalto para falar sobre o episódio, mas não teve resposta.

O gesto de Bolsonaro não foi noticiado na época, mas jornais reportaram como ele vaiou o discurso do então líder do PSOL na Câmara, deputado Ivan Valente (SP), durante a inauguração do busto.

Após a publicação do texto de Chico no Facebook, Marcelo Rubens Paiva dedicou uma coluna no jornal Estado de S. Paulo a elencar – e responder – as acusações que Bolsonaro fez a seu pai e à família nos últimos vinte anos.

“Como deputado, Jair Bolsonaro costuma proferir desde os anos 1990 na Câmara dos Deputados discursos mentirosos sobre meu pai, Rubens Paiva, um deputado federal como ele”, Marcelo escreveu também em outubro.

“A família Rubens Paiva, além de conviver com a dor morte sob tortura absurda por tantas décadas, ainda tem que aturar o ódio delirante de Bolsonaro (…)”

Os Paiva deixaram Eldorado nos anos 1970 e hoje os Bolsonaro são a família mais abastada da cidade. Os irmãos do presidente têm uma rede de lojas de móveis e de material de construção presente em mais de dez municípios do Vale do Ribeira.

A BBC News Brasil foi à loja de um sobrinho de Bolsonaro, um dos poucos parentes que ainda vivem em Eldorado, mas disseram que ele estava viajando.

Fonte: BBC News Brasil